KAREN EPPINGHAUS
Jongo do Vale do Café
Pólo de resistência do Jongo, o Vale do Café abriga diversas comunidades remanescentes quilombolas que lutam para preservar e difundir as tradições desta expressão afro-brasileira surgida das senzalas das fazendas de café do Vale do Rio Paraíba.
Registrado pelo IPHAN como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil em dezembro de 2005, o Jongo possui enorme importância na formação da cultura brasileira, sendo considerado o “pai do samba” carioca.
Dependendo da comunidade, o Jongo difere na forma de ser tocado e dançado, podendo ser chamado também de caxambu, tambor, tambu ou batuque, estando sempre presentes os elementos comuns que o caracterizam: a louvação aos ancestrais,
a utilização de enigmas cantados e o uso do elemento coreográfico da umbigada na dança, características dos povos bantos oriundos da região do Congo-Angola.
"O gente nasci n´Angola
Angola quem me criou
Eu sou filho de Moçambique
Eu sou negro Sim Senhor"
(Ponto de Jongo, Comunidade Quilombo São José da Serra)
Essencialmente rural, o Jongo passou a ser praticado também em periferias urbanas por grupos descendentes de ex-escravizados das fazendas que migraram para os subúrbios ou favelas mais próximas dos centros em busca de melhores oportunidades.
As rodas de Jongo geralmente acontecem em locais abertos e, ainda hoje, os jongueiros costumam dançar descalços, da mesma maneira que os seus ancestrais o dançavam na época da escravidão. Contam com a percussão de tambores, as palmas dos participantes e os cânticos - chamados de pontos - entoados por um dos jongueiros, que são respondidos em coro pelos demais jongueiros da roda.
Os pontos falam das memórias da chegada dos africanos escravizados nas lavouras de café, das opressões do tempo de cativeiro, do fim da escravidão, das dificuldades enfrentadas pelos libertos, de sabedorias ancestrais, da trajetória da comunidade. Um registro da vida cotidiana do passado e do presente, servindo historicamente como uma crônica social dos marginalizados. São utilizados também para honrar os antepassados, homenagear os jongueiros velhos, pedir licença para abrir a roda, fechar a roda, ou, ainda, desafiar e lançar encanto para outro jongueiro.
"Oi negro, que tá fazendo?
Oi, na fazenda do senhor?
Sinhozinho mandou embora
Pra quê que negro voltou?
Dia treze de maio
Cativeiro acabou
E os escravos gritavam
Liberdade, senhor!"
(Ponto de Jongo, Comunidade Quilombo São José da Serra)
Muitas vezes os pontos de jongo usam metáforas, preservando a poesia desta linguagem cifrada que, no passado, servia para que os escravizados se organizassem e resistissem ao sistema escravocrata que os oprimia.
"Nos tempos da escravidão, a poesia metafórica do jongo permitiu que os praticantes se comunicassem por meio de pontos que os capatazes e senhores não conseguiam compreender. Sempre esteve, assim, em uma dimensão marginal, em que os negros falam de si, de sua comunidade, por meio da crônica e da linguagem cifrada".
(Dossiê nº 5 IPHAN, 2007)
Os Mestres e Mestras são muito respeitados na roda de jongo, pois são eles os responsáveis pela transmissão às novas gerações do conhecimento recebido de seus ancestrais. Um elo entre o passado e o presente, que permite, como um registro da memória, que se mantenha viva a tradição do Jongo. Por isso, é comum que, ao se iniciar uma roda de jongo, se peça a benção aos mais velhos com a saudação "Saravá, Jongueiro velho".
"Saravá jongueiro velho
Que veio pra ensinar
Que Deus dê a proteção
Pro jongueiro novo
Pro jongo não se acabar"
(Jefinho Tamandaré, do Jongo Tamandaré de Guaratinguetá)
Pedro D’Agua Limpa, mestríssimo na capoeira, historiador, escritor, ativista da igualdade racial desde 1965 e jongueiro de Pinheiral.
D. Nilzete Xavier, fundadora do grupo de dança afro N'Zinga e integrante do Jongo de Arrozal.
Os tambores são elementos centrais no Jongo. Reverenciados como uma entidade sagrada, a eles se pede licença cada vez que se inicia um jongo ou se entra na roda, pois é ele que estabelece a conexão com a ancestralidade e as forças do mundo espiritual.
"O Jongo é uma dança dos ancestrais, dos pretos-velhos escravos, do povo do cativeiro, e por isso pertence à 'linha das almas'.
Contam que aquele que tem a 'vista forte' é capaz de enxergar um antigo jongueiro falecido se aproximar da roda para relembrar o tempo em que dançava o caxambu. Contam também que alguns jongueiros, à meia-noite, plantavam no terreiro uma muda de bananeira que, durante a madrugada, enquanto o Jongo rolava, ela crescia e dava frutos distribuídos para os presentes".
(Jongo da Serrinha)
"Ô Mãe África
Vem lembrar teu cativeiro
Ai como chora meu tambu, ai meu tambu
Como chora candongueiro, ai candongueiro
De tanto soluçar, soluçar, soluçar
Vai molhar o meu terreiro"
(Jongo de Tamandaré)
O Jongo é mais do que um ritmo ou uma dança. É um espaço de preservação da memória, construção de uma identidade coletiva e afirmação da cultura negra.
Ensaio realizado durante o 2º Encontro de Jongos do Vale do Café, no Parque das Ruínas da cidade de Pinheiral.
O evento reuniu cinco comunidades jongueiras centenárias da região: Jongo de Pinheiral, Quilombo São José/Valença, Vassouras, Arrozal/Piraí, Barra do Piraí, além do Jongo do Morro da Serrinha.