KAREN EPPINGHAUS
Presente de Iemanjá
do Mercadão de Madureira
A tradicional festa faz parte do calendário oficial da cidade e conta anualmente com centenas de adeptos das religiões de matriz africana e simpatizantes, que se reúnem para homenagear essa Orixá tão popular, que é mãe de todas as cabeças e governa a humanidade.
O Mercadão de Madureira é um centro de comércio popular na Zona Norte do Rio de Janeiro, referência para a comunidade afro-brasileira por abrigar um número significativo de lojas especializadas em artigos religiosos.
Considerado pelo povo de santo como uma extensão dos seus terreiros, o local funciona sobretudo como um espaço de trocas socioculturais e de preservação do patrimônio cultural das religiões de matriz africana.
Há mais de 20 anos, em 2003, foi criada a Festa de Iemanjá do Mercadão, para comemorar e agradecer à Iemanjá pela reconstrução do espaço, destruído por um incêndio que causou o seu fechamento por quase dois anos.
Desde então, todo ano, no dia 29 de Dezembro, é realizada a tradicional festa, que faz parte do calendário oficial da cidade do Rio.
O evento tem início no próprio mercadão, com rituais de agradecimento e um cortejo que percorre as lojas recolhendo dos comerciantes os presentes que serão ofertados à Rainha do Mar. De lá, comerciantes, religiosos e simpatizantes seguem para as areias da praia de Copacabana, Zona Sul do Rio, acompanhando o caminhão que transporta a Rainha do Mar e as oferendas.
Os presentes normalmente são barquinhos contendo oferendas como flores, velas, champanhe, frutas, pentes, espelhos e perfume de lavanda para homenagear esta poderosa Orixá e agradecer pelo ano que se passou. Nos barquinhos são depositados também os papéis com os pedidos dos devotos para o próximo ano.
A conscientização ecológica vem transformando a tradição de ofertar presentes para Iemanjá e todo o material que agride o meio ambiente, como vidro, plástico, metal e papel, é recolhido para ser depositado em outro local.
Os presentes e a imagem de Iemanjá são levados para o centro de um espaço reservado para os participantes do evento, enquanto os simpatizantes e curiosos acompanham a celebração do lado de fora.
Durante algumas horas, ao som dos atabaques e de pontos entoados com muito entusiasmo, todos dançam, cantam e reverenciam a Senhora das Águas.
Uma performance especial de Iemanjá encanta a todos os presentes: as roupas litúrgicas, os objetos sagrados utilizados na encenação, os movimentos suaves, a dança leve que imita o balanço do mar. Uma criança é entregue pela mãe aos cuidados da Orixá encarnada, que evoca o seu caráter de divindade fértil, protetora e acolhedora.
Luciene Martins do grupo de dança afro Ajo Orun Aye Show encarna Iemanjá
Chega o tão esperado momento da oferta dos presentes no mar. Uma multidão acompanha os devotos e religiosos, que carregam pombas brancas, associadas a Oxalá. Uma vez soltas, estas tem como função estabelecer a ligação do Òrun e o Àiyé (o céu e a terra).
"Vai meu barquinho sereno
Vai pelas ondas do mar
Vai leva nossa oferenda
Para mamãe Yemanjá
Leva nosso pranto sincero
A nossa doce oração
Pede a Rainha do Mar para
Que nos dê proteção"
(Ponto cantado de Iemanjá)
Os barcos são entregues levando os pedidos fervorosos dos seus filhos, que cantam repetidas vezes o ponto "vou levar seu presente no mar". O mar abraça os devotos nas areias, que rezam, cantam, agradecem, se benzem e se banham em suas águas sagradas. A energia poderosa de Iemanjá se manifesta em filhos iniciados tomados pelo êxtase do transe.
Uma emoção indescritível arrebata a todos que se encontram ali unidos em uma só intenção de paz, amor, proteção e felicidade.
Arlete Barbosa Franco (Mãe Preta de Xangô)
Dinete Barbosa
Os sentimentos de fé e devoção transbordam. A festa da Rainha do Mar é uma oportunidade para se conectar com Iemanjá na qualidade de divindade e mãe. É ela que rege todas as cabeças e, de acordo com a tradição Iorubá, a cabeça carrega o corpo. Por isso é ela que traz o equilíbrio emocional e psíquico, concedendo harmonia entre o sentimento e a razão aos seus filhos.
Como arquétipo da Grande Mãe do mundo, representada por uma figura feminina de seios fartos, alimenta e nutre toda a humanidade, sem nenhuma distinção, atraindo abundância e prosperidade para suas vidas.
"Todos somos filhos de Iemanjá, ela é a grande mãe do mundo, a representação das águas que, pelos oceanos, unem todos os continentes (...)
Ela traz também a noção fundamental de ancestralidade (...)
A mensagem de Iemanjá para a humanidade é de união, de respeito, de igualdade. Todos lembrando que somos filhos dela, somos irmãos."
(David Dias, pesquisador em ciência da religião na PUC-SP, via BBC Brasil)
Uma das divindades mais cultuadas e respeitadas em todo o Brasil, Iemanjá se popularizou no imaginário coletivo como a mulher branca de cabelos longos com sua túnica azul, em função do sincretismo das religiões de matriz africana com o catolicismo, que associa a Orixá africana com Nossa Senhora, em suas mais diversas representações. Por isso o Dia de Iemanjá é comemorado em 02 de fevereiro, mesma data em que se cultua Nossa Senhora dos Navegantes.
Também houve uma fusão de sua imagem com mitos das culturas indígenas, assumindo muitas vezes a figura de uma sereia e os nomes de origem tupi-guarani Iara ou Janaína.
Todas essas associações reforçam seu atributo de grande mãe d’água e explicam em grande parte a popularização de seu culto junto a grande parte dos brasileiros - praticantes de religiões afro-brasileiras ou não.
Uma figura que está profundamente arraigada na nossa cultura, porém de forma muito distante da imagem de mãe negra africana que era cultuada nas terras de Abeokutá, às margens do Rio Ogum, na Nigéria.
O sincretismo e a diversidade que dele advém são intrínsecos ao dinamismo próprio da cultura. Porém, há de se tomar cuidado com o apagamento dos traços culturais de matriz negra através de um processo de apropriação cultural indevida. É importante lembrar que os orixás como ancestrais possuem uma origem comum à um determinado povo, em um determinado tempo e espaço.
"Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Dandalunda, Janaína
Marabô, Princesa de Aiocá
Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Iemanjá
Onde ela vive?
Onde ela mora?
Nas águas, na loca de pedra
Num palácio encantado no fundo do mar
O que ela gosta?
O que ela adora?
Perfume, flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar
Como se saúda a Rainha do Mar?Al
Alodê, Odofiaba, minha mãe, mãe d'água, odoyá
Qual é seu dia, Nossa Senhora?
É dia 2 de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar
O que ela canta?
Por que ela chora?
Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita se você chorar
Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Pescador e marinheiro quem escuta a Sereia cantar
É com o povo que é praieiro
Que Dona Yemanjá quer se casar"
(Letra de Yemanjá Rainha do Mar, de Pedro Amorim / Paulo César Pinheiro)
Embora o dia de Iemanjá seja comemorado no 02 de fevereiro, no Rio de Janeiro, a Rainha do Mar é muito celebrada no último dia do ano, quando as pessoas costumam se vestir de branco e ir às praias para lhe oferecer flores brancas, pular sete ondas e fazer seus pedidos para ter prosperidade no novo ano.
Uma tradição que teve início com Tata Tancredo Silva, grande sacerdote em cultos de origem angolocongolesas que, no início dos anos 1950, passou a estimular a ocupação da praia de Copacabana pelos umbandistas na noite do dia 31 de dezembro. Um ritual que passou a ser praticado em outras praias do Rio de Janeiro e, posteriormente, em outros estados.
Porém, com a crescente espetacularização e exploração comercial do réveillon de Copacabana, com megaeventos, hotéis lotados de turistas e a queima de fogos atraindo uma verdadeira multidão para as areias da praia de Copacabana, os umbandistas passaram a deixar de fazer suas festas para Iemanjá ou a realizar suas cerimônias alguns dias antes e em lugares mais reservados.
Eduarda, Heloá e Leandra
Apesar deste processo de apagamento das religiões de matriz africana, em 2011 as festas que cultuam Iemanjá nas praias do Rio de Janeiro foram declaradas Patrimônio Cultural imaterial pela Prefeitura da cidade. Um reconhecimento da importância desta tradição profundamente arraigada na cultura carioca.
Neste sentido a Festa de Iemanjá do Mercadão de Madureira, que se repete há mais de 20 anos, se tornou um símbolo de resistência dos praticantes da umbanda e do candomblé, que mantém viva uma importante tradição, lembrando de suas origens sem deixar de acolher a todos os que, adeptos ou não dessas religiões, desejam a eles se juntar para homenagear a Grande Mãe.
Ensaio realizado durante a 21ª edição da Festa de Iemanjá do Mercadão de Madureira,
em 29 de Dezembro de 2023