KAREN EPPINGHAUS
Terra Kalunga
Muito conhecida pelas cachoeiras impactantes e trilhas cinematográficas, a Chapada dos Veadeiros guarda uma riqueza ainda maior: o povo Kalunga, nome que na língua banto significa lugar sagrado, de proteção.
Ocupando o maior território quilombola do País, os Kalunga mantêm uma profunda conexão com sua terra e suas raízes. Não à toa foi o primeiro território brasileiro a ser reconhecido, no ano de 2020, pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente como TICCA - Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais -, também chamados de territórios de vida.
Trata-se de um título global atribuído aos povos e comunidades locais que
possuem forte relação com o seu território, mantêm modos de vida tradicionais, possuem processos internos de gestão e governança, buscam o bem comum de seu povo e desempenham um papel fundamental na preservação da natureza para as próximas gerações.
Um reconhecimento internacional da importância do papel destas populações na conservação ambiental e sociocultural, que funciona como mais um instrumento de proteção de seus direitos - inclusive de suas terras - contra ameaças externas ainda tão frequentes.
"Nos últimos anos, diversas comunidades têm sofrido com uma série de impactos que influenciam diretamente nos seus modos de vida. O conceito TICCA, junto ao processo de autoproclamação e registro vem como uma ferramenta a mais na proteção desses territórios de vida e pode atuar com denúncias as pressões, criar mecanismos de defesa além de buscar apoio, inclusive, internacional para mitigar esses impactos.
(...)
A busca por reconhecimento pode ser vista também como um pedido de socorro dessas comunidades, como uma fonte de fazer suas vozes e direitos serem ouvidas"
(Lilian Pereira, Coordenadora de Assuntos Indígenas e Comunidades Tradicionais do PCA da Wetlands International Brasil e da Mupan – Mulheres em Ação no Pantanal*)
Com uma área de mais de 230 mil hectares de cerrado protegido, que abrange parte de três municípios na região da Chapada dos Veadeiros/GO, o território Kalunga é também, desde 1991, tombado como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural pelo estado de Goiás, mantendo 83% de sua área com a vegetação intocada.
Criado no século XVIII por negros escravizados fugidos ou alforriados do trabalho forçado nos garimpos de ouro da região de Goiás, o quilombo Kalunga se manteve isolado geograficamente por mais de 200 anos, protegido pelas serras e paredões de pedra que circundam seu território.
O difícil acesso ao território e a rica biodiversidade do cerrado nativo garantiram a sobrevivência do povo Kalunga e a formação de uma riquíssima cultura marcada pela manutenção dos saberes tradicionais e o vínculo com a natureza.
"Nós dependemos muito do Cerrado em pé, do Cerrado vivo. Ele protege a água, tem as frutas que são fonte de renda para sociedade. Assim, a gente não tem como não preservar o Cerrado. Esse é um trabalho que nossos antepassados deixaram pra nós e nós queremos deixar para as futuras gerações"
(Sirilo dos Santos Rosa, liderança do povo Kalunga.
Fonte: Agência Brasil)
Verdadeiros guardiões do cerrado, os Kalunga possuem uma relação de mutualidade com o meio-ambiente. Dependem de um ambiente frutífero e saudável para extrair as matérias-primas de seus produtos, utilizando os conhecimentos tradicionais transmitidos ao longo de gerações para fazer um uso sustentável dos recursos naturais à sua disposição.
Plantam em pequenas roças, no ritmo da natureza, sem máquinas ou venenos, dando descanso à terra. Coletam os frutos que a mata dá, através de um manejo responsável. Conhecem profundamente as relações entre a flora e os animais e buscam alternativas sustentáveis para preservar as matas e suas nascentes.
Uma luta pela sobrevivência se traduz na luta pela defesa do próprio Cerrado.
À medida em que cada Kalunga abre as portas de sua casa para nos receber, entendemos o que de mais especial essas terras abrigam: uma gente simples, forte, autêntica e muito, muito afetuosa.
Que sofre com a falta de recursos e de infraestrutura (em muitas casas até hoje sequer a luz chegou), mas que nutre um profundo amor pelo lugar em que vive e honra as tradições e os valores transmitidos pelos seus antepassados.
"(...) Aqui foram reconstruídas novas vidas
Que hoje é nossa existência.
Lutamos pela terra e pela conjuntura
Do nosso Território
Aqui há vidas, há um povo de saber único
Que quer viver e reviver!
Com dignidade ter nossos direitos
Que nos foram roubados.
A nossa vida foi de escravidão,
Muitos castigos e maltratação.
Fomos capturados, acorrentados,
Nossos corpos mutilados sem poder dizer não
No poder dos senhores concentraram nosso chão.
Chão de produzir, chão de florir,
Aqui construímos nossas vidas
Em um Quilombo a resistir
Kalunga amado, lugar sagrado,
Único e gostoso de viver
Nunca deixará de existir."
(Trecho do poema "Quilombo Kalunga, símbolo de resistência", de Bia Kalunga, líder quilombola, professora e poeta)
Um povo que perpetua a luta de seus antepassados pela concretização do direito de liberdade, agora ameaçado por formas modernas de opressão, e que deixa para o mundo um modelo colaborativo de sociedade, mais integrada com o seu meio.
Algumas figuras são centrais no meu imaginário sobre o território Kalunga.
Como D. Fiota e sua nora Jose, que fazem parte do projeto Mães de Oleo Kalunga, que reúne mulheres da comunidade Vão das Almas para produzir óleos, xaropes, doces, farinha de mandioca, sabão, entre outros produtos feitos de recursos naturais do cerrado, como tingui, pequi, mamona, coco indaiá, baru, jatobá, jenipapo e baunilha.
As duas costumam ir juntas ao rio que passa atrás do terreno de sua casa para lavar as roupas da família. O caminho é percorrido equilibrando bacias na cabeça, embalado por cantigas apreendidas com seus pais e avós.
Seu Zé Pretinho é um grande exemplo para as novas gerações. Liderança batalhadora e amorosa, de fala suave e jeito calmo, que nos ensina que não é preciso tempestade para ser fortaleza.
Um legado e tanto para os que vieram depois, para sua comunidade e todos nós brasileiros, que devemos tanto às populações quilombolas forjadas na luta e na resistência.
Dona Luzia é raizeira da comunidade Vão de Almas.
Franzina, percorre com agilidade as matas que rodeiam sua casa em busca das folhas, cascas e raízes que usa no preparo das garrafadas para imunidade e remédios caseiros para todos os males: problemas de mulher, potência dos homens, coração fraco, derrame.
Sozinha, ali no meio dos arbustos, com sua foice e seu facão na mão, revelando os recursos que a terra esconde, com o brilho do sol no rosto, Luzia já não lembra em nada aquela imagem inicial de mulher delgada.
Orgulhosa de sua sabença, se atém a cada planta medicinal que encontra em seu terreno, alertando sobre os seus usos, benefícios e cuidados. Não tem, no entanto, a dimensão exata da importância do papel que desempenha na conservação do seu território e sua biodiversidade.
Seu Eduardo, uma alma gentil que nos deixou há pouco. Conhecedor do valor da pausa e do respeito ao ritmo das coisas, guardava consigo a sabedoria do tempo.
Homem simples de trabalho pesado, que, no entanto, não se deixou embrutecer pela dureza na lida. Aprendeu com o gergelim que produzia a viver com resiliência e delicadeza.
Composto por quatro comunidades e dezenas de povoados que compartilham as tradições herdadas de seus antepassados, o território Kalunga abriga uma rica expressão cultural, marcada profundamente pela religiosidade, presente no seu cotidiano, nas curas das raizeiras e benzedeiras, nas músicas, nas danças e nos festejos populares, marcados pela mistura do sagrado e profano.
Suas festividades, que ganharam grande fama na região, homenageiam santos católicos e contam com tradições do catolicismo popular incorporados ao longo dos anos no território: novenas, romarias, giros e arremates das folias, hasteamento de mastro, encenação do Império, orações, benditos e ladainhas dos devotos.
Na encenação do Império, que reproduz simbolicamente a coroação do Imperador, os participantes se transformam em reis, rainhas e sua corte, em um ritual sincrético que reverencia sua memória ancestral e legitima a linhagem Kalunga como descendente não de escravos, mas de Reinos Africanos.
É nas festas que amigos e parentes se reencontram, vindos dos distantes vãos pertencentes ao território e, muitas vezes, de fora. Por isso, além de traduzirem uma legítima expressão de fé e devoção deste povo, são momentos de afirmação da identidade Kalunga, em que cada indivíduo revive o sentimento de pertencimento à esta comunidade.
As fogueiras acesas evocam o poder dos antepassados e os tambores, os pandeiros, as violas, a cantoria e as danças como a Sussa, a Curralera e a Catira, normalmente acompanhadas de bebidas e comidas tradicionais, dão o tom alegre das festas, que cumprem um importante papel social.
"Ô menina, o que você tem? Marimbondo, sinhá, marimbondo sinhá.
É hoje, é hoje que a palha da cana voa. É hoje, é hoje que tem de avoar."
(Cantiga de Sussa)
Expressão de matriz africana, a sussa é uma tradição das mulheres Kalunga, que cantam cantigas de versos simples sobre temas cotidianos e dançam aos sons da viola, pandeiro, caixa, bruaca e tambor onça equilibrando garradas sobre a cabeça, como faziam suas ancestrais.
Embora possa ser dançada também por homens, são as mulheres que ocupam um papel de centralidade na dança, em especial as mais velhas.
Lugar encantado de luta e resistência, guardado por um povo que vive e trabalha pela preservação de sua terra, tradição e cultura, em completa harmonia com a natureza.